A América em estado de choque
A maior tragédia política americana completa 35 anos
Milhares de mortos (cálculos imprecisos, até hoje, estimam em 10 mil pessoas) e cerca de um milhão de exilados. Eis o saldo do golpe militar que derrubou o governo socialista de Salvador Allende.
Um golpe contra os trabalhadores e o povo
Relembramos alguns factos e lições cruciais na memória histórica da classe operária a 35 anos do sangrento golpe patronal encabeçado por Augusto Pinochet.
DOSSIER – Golpe no Chile 11 Setembro 1973
1/4 - A traição de Pinochet
2/4 - Salvador Allende confiou demais
3/4 - Washington fez tudo para derrubar Allende
4/4 - Memorial dos anos felizes
1/4 A traição de Pinochet
O golpe de 11 de Setembro de 1973 contra o governo da Unidade Popular foi antecedido de dias frenéticos. O Presidente Salvador Allende tinha substituído duas semanas antes o chefe do Exército, general Carlos Prats, por um general praticamente desconhecido, Augusto Pinochet, considerado mais capaz de pôr ordem nas fileiras, nervosas e hostis à situação. O Chile era um país em alta tensão.
No sábado anterior, dia 8, um dos oficiais descontentes, o general Sérgio Arellano Stark, do Exército, visitou o novo comandante, em sua casa, anunciando-lhe a preparação do motim, segundo uma reconstituição dos acontecimentos publicada em 1998 pela jornalista chilena Patrícia Verdugo.
O visitado terá recebido a notícia com "surpresa e aborrecimento", talvez por ter sido posto perante uma decisão já tomada.
Pinochet foi ainda convidado a telefonar ao chefe da Força Aérea (Fach), general Gustavo Leigh, um dos vértices da conjura, o que não chegou a fazer.
Horas antes, o Presidente almoçara em casa de uma amiga, Miria Contreras, encontrando-se aí, sem o esperar, com Prats, vestido à civil, que o avisou sobre um golpe iminente.
Pouco depois, convocava o comandante do Exército para uma reunião e La Moneda, no domingo. Ao mesmo tempo, em Valparaíso, na Academia de Guerra, reuniam-se os golpistas da Marinha, encabeçados pelo almirante José Toribio Merino.
No encontro, o almirante Patricio Carvajal informou que a Fach estava pronta a aderir, faltando só conhecer a posição do Exército. Já altas horas, decidiram voltar a reunir-se no dia seguinte, depois da missa, num falso encontro social.
Carvajal abandonara entretanto a reunião, por ter de se encontrar em Santiago com outros conjurados, instando o comandante da Infantaria da Marinha, almirante Huidobro, a acertar nessa mesma noite o dia e a hora do levantamento militar.
Tinha de ser já. Mas, segundo a investigadora, Huidobro combinaria a data de outro modo. Já em casa, telefonou ao chefe dos serviços de informação da sua arma, capitão de navio Ariel González, com quem urdiu a mentira que mudaria a história do país. Daí a horas diriam aos almirantes que tinham ido a Santiago e acertado com a Força Aérea e o Exército o golpe para o dia 11, terça-feira, às seis da manhã.
E assim foi. Domingo, ao mesmo tempo que Salvador Allende recebia Pinochet e o instava a sufocar, em coordenação com os trabalhadores organizados, a revolta iminente, a Marinha aceitava a data e punha-a, horas depois, à frente dos olhos dos chefes da Força Aérea e do Exército.
No dia e hora marcados, as três armas, coligadas, derrubavam o governo da Unidade Popular, o Palácio de La Moneda era bombardeado e Allende, que chegara a acreditar que o golpe estava neutralizado, suicidava-se com um tiro na cabeça.
2/4 Salvador Allende confiou demais
Por Fernando Sousa
Passam hoje trinta anos sobre o golpe militar de Pinochet. Foi no dia 11 de Setembro de 1973, quando militares, apoiados pela grande burguesia e os Estados Unidos, puseram abruptamente termo ao governo da Unidade Popular, de Salvador Allende.
O levantamento começou eram seis horas e atingiu o pico ao fim da manhã com o bombardeamento aéreo do palácio de La Moneda, depois de o Presidente, eleito democraticamente três anos antes, ter recusado entregar o poder e se ter despedido dos chilenos no célebre discurso trasmitido pela rádio Magallanes, que a aviação ainda não tinha neutralizado. " (...) Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no seu destino.
Outros homens superarão este momento cinzento e amargo, onde a traição pretende impôr-se. Mas saibam todos que muito mais cedo que tarde se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. "Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras e tenho a certeza de que o meu sacrifício não será em vão.
Tenho a certeza que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a cobardia e a traição." Ao princípio da tarde, os militares entraram no palácio, sem encontrar praticamente resistência, conta a jornalista chilena Patrícia Verdugo, que reconstituiu os acontecimentos ("Interferencia Secreta", Editorial Sudamerica, Santiago, 1998). "General, general, aqui, aqui!" - grita um soldado para o chefe da invasão, Javier Palácios, de dentro de uma sala. O oficial entra. Lá dentro, um homem está de pé e com as mãos no ar. É um dos médicos do Presidente, Patricio Guijón. Ao lado dele, num cadeirão vermelho, está um corpo, com o crâneo despedaçado por uma bala. A espingarda que a disparou ainda está entre as pernas do cadáver. É Allende. Tinha preferido o suicídio à rendição.
Três décadas depois, a experiência da Unidade Popular (UP, integrada por socialistas, comunistas, radicais e cristãos de esquerda), a construção de uma sociedade socialista dentro de um regime democrático, continua objecto de polémica. Ainda há dias o actual Presidente chileno, Ricardo Lagos, considerou num encontro em La Moneda com jornalistas estrangeiros que o líder da UP cometeu um grande erro ao tentar impor ao país um modelo socialista sem ter o apoio suficiente para o fazer. "Tentou introduzir mudanças profundas e necessitava de um apoio mais amplo do que tinha.
Era impossível governar tentando fazer essas mudanças", disse o mandatário chileno, chamando a atenção para as tensões internacionais da altura derivadas da guerra fria entre Washington e Moscovo. Lagos foi um dos teóricos do regime da UP. A tese com que acabou o curso de Direito, no princípio dos anos 60, intitulada "A Concentração do Poder Económico", onde deixava a nu o domínio da economia do país por parte de apenas onze famílias e propunha o controle do Estado sobre os meios de produção, acabou como um documento de referência da revolução tranquila allendista.
Outros, como o sociólogo chileno Tomas Moulián, vêem o período da Unidade Popular à luz da trajectória do homem que a sonhou e pôs em prática. "Salvador Allende visava conquistar espaços para uma política popular no seio de um sistema democrático representativo no qual políticas de aliança à esquerda fossem realizáveis. Mas nunca abandonou a crítica do capitalismo e o desejo do socialismo.
É essa a grande diferença entra as suas posições e as do actual Partido Socialista chileno, membro da Concertação Democrática, no poder desde o fim da ditadura. Para Allende, ser realista não significava negar o futuro, contentando-se com uma política dita pragmática" ("Le Monde Diplomatique", Setembro, 2003). Salvador Allende formou as suas ideias políticas ao período das coligações de esquerda dos anos 1938-47, quando conclui pela necessidade urgente de juntar socialistas e comunistas num mesmo projecto.
Em 1952, numa reviravolta que então desconcertou muita gente, abandonou as fileiras socialistas, onde militava, e formou, com os comunistas, a Frente da Pátria, o embrião teórico da conquista do poder por meios democráticos e pacíficos.
Candidato à chefia do Estado em 1952, 1958 e 1964, perde sucessivamente todas as eleições, mantendo-se no entanto inabalável na convicção de que é possível aproximar os dois maiores partidos de esquerda do país e chegar pacificamente ao poder. Consegui-lo-à, no dia 4 de Setembro de 1970, com 36,3 por cento dos votos.
Mas resistirá sempre, mesmo durante as maiores crises, a abandonar a sua ética humanista e a transformar-se, como todos os seus antecessores desde 1932, em mais um líder autoritário, o que, segundo vários autores, terá incentivado a oposição e alguns sectores da extrema-esquerda a contestarem a sua política. Foi essa recusa que o ganhou e o perdeu.
3/4 Washington fez tudo para derrubar Allende
No dia 19 de Fevereiro, durante uma mesa redonda com estudantes de liceu, o secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, foi interrogado sobre "o golpe de Estado que os Estados Unidos organizaram no Chile, em 1973". Sem pôr em causa a pergunta, o chefe da política externa americana respondeu: "Não é uma parte da história de que possamos orgulhar-nos."
Pela primeira vez, um responsável norte-americano reconhecia o papel dos EUA no levantamento militar contra Salvador Allende. O comentário teve o condão de enervar alguns dos actores da época. William Rogers, encarregado da América Latina no Departamento de Estado nos anos 70, acusou Powell de "alimentar uma patranha". Assim, desde a desclassificação dos documentos relativos a este período, decidida pelo Presidente Clinton, as dúvidas acabaram: "Se os Estados Unidos não participaram directamente na conjura de 11 de Setembro de 1973, fizeram tudo para preparar o terreno para um golpe militar contra Allende, que era um dirigente democraticamente eleito.
A sua responsabilidade não é menos grave", afirma Peter Kornbluh, investigador dos Arquivos de Segurança Nacional, em Washington. 48 horas para um plano de acçãoKornbluh, 47 anos, jogou um grande papel, em 1999 e 2000, para facilitar a desclassificação dos arquivos da CIA. Sempre que a agência de informações resistia a publicar certos documentos, ele convocava a imprensa.
Explorando a enorme massa de papéis desde então no domínio público (1), acaba de publicar o livro "The Pinochet File" (The New Press). É o quadro mais completo até hoje sobre o papel desempenhado pelos Estados Unidos no Chile. A implicação norte-americana começa logo no dia 15 de Setembro de 1970, decorridos apenas onze dias sobre a eleição de Allende.
Durante uma reunião na Casa Branca, o Presidente Nixon ordena à CIA que impeça a investidura do líder socialista, prevista para o diz 4 de Novembro. As notas manuscritas tomadas durante uma reunião pelo director da agência, Richard Helms, testemunham-no: "Uma possibilidade em dez talvez, mas salvar o Chile!" "Não implicar a embaixada.". "Dez milhões de dólares, ou mais se for preciso.". "Trabalho a tempo inteiro, os nossos melhores homens.". "48 horas para um plano de acção.". Helms leva estas orientações para os seus serviços: "O Presidente Nixon decidiu que um regime Allende no Chile não é aceitável para os Estados Unidos. Pede à agência que impeça Allende de aceder ao poder, ou que o deponha ["unseat him"]. Não era preciso ser mais claro. Uma "task force" foi criada, confiada ao agente David Philips. Foi o projecto "Fubelt" (2). Henry Kissinger, conselheiro para a Segurança Nacional, supervisionaria tudo.
O lançamento da Track II
A CIA desenvolve a Track II (Pista 2), assim chamada para a distinguir da campanha contra Allende realizada em cooperação com a embaixada americana e o Presidente chileno democrata-cristão, Eduardo Frei. O objectivo da Track II é identificar os militares capazes de levar a bom porto um "putsch" e de lhes levar uma ajuda financeira e um apoio técnico. Quatro "bandeiras falsas" (agentes capazes de esconder a nacionalidade americana) são enviados para Santiago para reforçar a "estação" da CIA. Apenas descobrem "um único dirigente militar de estatura nacional aparentemente decidido a expulsar Allende pela força", mas mesmo ele é insuficientemente brilhante: trata-se do general na situação de reforma Roberto Viaux, que já tinha, sem sucesso, tentado derrubar Eduardo Frei, em 1969. Apesar da opinião desfavorável do embaixador Edward Korry, o posto da CIA em Santiago advoga o apoio directo a um "putsch".
No dia 5 de Outubro, Kissinger dá luz verde. Vinte e quatro horas depois, a CIA, em Langley (sede da agência nos arredores de Washington) envia uma mensagem para a sua equipa em Santiago: "X [nome censurado] ordena-vos que contactem o Exército para lhe fazerem saber que o Governo americano deseja uma solução militar e a apoiará, agora ou mais tarde.". Há um obstáculo no caminho dos candidatos ao "putsch".
Chama-se René Schneider, é o chefe das forças armadas e tem o agravo de obedecer à Constituição e ao primado do poder civil sobre o militar. A CIA decide então "apadrinhar", no momento oportuno, o seu rapto. Financia e arma Viaux e os jovens oficiais que lhe estão próximos. Quando o ex-general pretende tentar o golpe, a CIA opõe-se, julgando a acção prematura. "Preserve os seus efectivos. Virá o tempo em que o senhor e os seus amigos poderão agir. Continua a ter o nosso apoio." Porém Viaux não ouve. Rapta Schneider e mata-o, mas a conspiração fracassa. A CIA tenta abafar a questão, continuando a financiar o grupo de amotinados e comprando o seu silêncio com 35 mil dólares. Nixon envia a Frei um mensagem de condolências pelo "repugnante acontecimento".
"Fracassou, o filho da mãe"
Allende acede ao poder no dia 4 de Novembro de 1970. O episódio Schneider arrefeceu Washington. Porém o objectivo "derrubar" Allende permanece, como o testemunham as actas do Conselho Nacional de Segurança do dia 6 de Novembro. "Temos de fazer o possível para o prejudicar, para o fazer cair", diz então o secretário da Defesa, Melvin Laird. A ideia de ajudar directamente os conspiradores foi enterrada, mas todos os esforços são feitos para criar "um clima de golpe de Estado": levantamento de um "bloqueio invisível", financiamento do jornal de direita "El Mercúrio" e do Partido Nacional, etc. O grupo de telecomunicações ITT ajuda a CIA a favorecer o caos económico.
Mas sem tomar muitas precauções: alguns documentos chegam ao "Washington Post", que publica um artigo sobre as conspirações norte-americanas. Indignação em Santiago, idem no Congresso americano. Nixon fica furioso com o embaixador Korry, cujas palavras são mencionadas nos documentos da ITT reproduzidos pelo Post (ele explica que Nixon lhe ordenou que fizesse o possível para impedir a chegada de Allende ao poder). "De onde é que isto saiu?" - enerva-se Nixon numa conversa telefónica, acrescentando: "Pronto, é verdade. Ele recebeu essa ordem. Mas falhou, o filho da mãe! Esse é que é o problema. Ele devia ter impedido Allende de chegar ao poder!"
"Golpe de Estado próximo da perfeição"
O Congresso abre um inquérito. Apesar das pressões dos "duros" do escritório da CIA em Santiago, a agência desaprova qualquer ajuda directa aos candidatos golpistas. No dia 8 de Setembro de 1973, a agência é avisada de um golpe de Estado em preparação. Alerta a Casa Branca. No dia 11, transmite um pedido dos conjurados: os Estados Unidos ajudá-los-ão se as coisas correrem mal? Washington não vê necessidade de responder: "O golpe de Estado ficou próximo da perfeição", declara entusiasmado o tenente-coronel Patrick Ryan, encarregado das forças navais americanas em Valparaíso, num relatório que envia a Washington.
(1) www.gwu-edu/~nsarchiv/latin_america/chile.htm
(2) O código do Chile no jargão da CIA
*Exclusivo Público/Libération.
4/4 Memorial dos anos felizes
Os mil dias do Governo de Unidade Popular foram muito duros, intensos, sofridos e ditosos. Dormíamos pouco. Vivíamos em todo o lado e em lado nenhum. Tivemos problemas sérios e procurámos soluções. Esses mil dias podem ser acompanhados de qualquer adjectivo, mas se há uma grande verdade é que, para todos aqueles e aquelas que tivemos a honra de ser militantes do processo revolucionário chileno, foram dias felizes, e essa felicidade é e será sempre nossa, permanece e permanecerá inalterável.
Queridas companheiras, queridos companheiros. Quem de nós pode esquecer o sorriso dos irmãos Weibel, de Carlos Lorca, de Miguel Enríquez, de Bautista von Schowen, de Isidoro Carrilo, de La Payita, de Pepe Carrasco, de Lumi Videla, de Dago Pérez, de Sérgio Leiva, de Arnoldo Camú, de todas e todos os que hoje, trinta anos mais tarde, não estão connosco mas vivem em nós?
Cada uma e cada um tem na sua memória um álbum particular de recordações felizes daqueles dias em que demos tudo, e parecia-nos que dávamos muito pouco, porque tínhamos gravado na pele os versos do poeta cubano Fayad Jamis: "por esta revolução haverá que dar tudo, haverá que dar tudo, e nunca será o suficiente". Houve quem no cómodo e cobarde cepticismo desfrutou de um tempo morto a que chamaram juventude. Nós, sim, tivemos juventude, e foi vital, rebelde, inconformista, incandescente, porque se forjou nos trabalhos voluntários, nas frias noites da acção e propaganda. Não houve beijos de amor mais fogosos do que aqueles que se deram no fragor das brigadas muralistas. Aquele que beijou uma rapariga da brigada Ramon Parra ou Elmo Catalán beijou o céu e não houve espada capaz de tirar esse sabor dos lábios.
Outros, na atroz cobardia dos que criticaram sem dar nada, sem se queimar, sem arriscarem, sem conhecer o magnífico sentimento de fazer o que é justo e no momento justo, nas suas mansões sem glória, comendo na prata que herdaram dos comendados e bebendo puro suor dos operários, avisavam que estávamos a cometer excessos. Claro que cometemos erros. Éramos autodidactas na grande tarefa de transformar a sociedade chilena. Metemos muitas vezes o pé na argola mas nunca as mãos nos bens do povo. Enquanto outros conspiravam, nós alfabetizávamos. Enquanto outros se aferravam com fúria homicida aos seus bens mal adquiridos, pois a propriedade da terra vem sempre do roubo, nós permitimos que os párias da terra olhassem pela primeira vez para os olhos do patrão e lhe dissessem: "Grande filho-da-puta, exploraste-me, tal como aos meus pais e avós, mas aos meus filhos e aos filhos dos meus filhos não os explorarás." E essas palavras são parte do nosso legado feliz, da nossa memória feliz.
Fumávamos "marijuana" dos Andes misturada com tabaco doce dos Baracoas. Ouvíamos os Quilapayún e Janis Joplin. Cantávamos com Victor Jara, os Inti Illimani e os The Mamas and Papas. Dançávamos com Hector Pavez, Margot Loyola, e os quatro rapazes de Liverpool fizeram suspirar os nossos corações. Usámos calças à boca de sino e as nossas raparigas minissaias que excitavam Deus e o Diabo. E tínhamos maneiras próprias de estar, que com uma só palavra diziam quem éramos e o que sonhávamos: Olá, companheira, olá companheiro. E com isso ficava tudo dito.
Angel Parra, Rolando Alarcón, Isabel Parra e mil cantores populares deram-nos uma nova dimensão do amor, esse formidável verbo que começámos a conjugar à nossa maneira.
Traçámos metas impossíveis, SUL-realistas, e cumprimo-las. Por uma vez na nossa história, todos os meninos do Chile mamaram meio litro de leite, de leite branco e justo, de leite necessário e proletário, porque o pagaram justamente os que produziam a riqueza. Um dia fez-se a grande conferência da UNCTAD [Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento], e os arquitectos, e os engenheiros, e os capatazes opinaram que não era possível levantar o grande edifício que nos mostraria como um povo em marcha, mas os nossos pedreiros, electricistas, estucadores e professores de capacete salpicado de gesso disseram que sim, que era possível, e fizeram-no. Mais tarde foi o edifício da juventude chilena. Quem não comeu algum dia na UNCTAD, chamado também edifício Gabriela Mistral e que mais tarde foi usurpado pelos assassinos? Todavia, ele aí está e aí permanecerá como um enorme testemunho desses mil dias em que tudo foi possível.
Os que não tinham imaginação nem lugar nesse reino do possível, do dito possível, conspiravam contra o sol, contra o mar, contra o Verão a partir das suas mansões de Reñaca ou Papudo. Mas nos balneários populares as famílias dos operários tinham pela primeira vez a possibilidade de estar ao sol, junto ao mar, que de verdade nos banhou tranquilo. Jogaram ao pôr-do-sol, passearam de mão dada, amaram-se, fizeram planos possíveis, enquanto as crianças eram entretidas pelos voluntários da Federação de Estudantes do Chile, e divertiam-se com os títeres, o teatro, as aulas de música e de pintura dadas por artistas militantes de um povo em marcha.
Hoje, trinta e cinco anos depois, alguns dos que não tiveram a ousadia de se envolver, de dar tudo, ufanam-se de uma estranha capacidade premonitória que lhes permitiu vaticinar o desastre e os aconselhou a manter-se à margem. Miseráveis, pobres miseráveis que perderam a oportunidade mais bela de fazer história, mas de a fazer justa. Esses mesmos são hoje os paladinos da reconciliação e apontam-nos os "excessos". Mas esses iluminados nunca mencionam um desses excessos em particular: Provocámos o imperialismo ianque quando nacionalizámos o cobre? Esquecem que o fizemos com tanta suavidade, inclusivamente pagando indemnizações, que chegámos a ser alvo de críticas da própria esquerda. Mas fizemo-lo assim porque não queríamos a confrontação directa com o inimigo da humanidade. Soubemos responder às provocações com vigor e com violência quando ela foi precisa, mas nunca provocámos. O nosso tempo era o tempo dos construtores, prestávamos toda a atenção à argamassa que uniria os ladrilhos da grande casa chilena, e nenhuma à conjura porque éramos e somos mulheres e homens de honra.
A maior expressão cultural de um povo é a sua organização, e fomos um povo muito culto porque a nossa organização, polifacetada, plural, às vezes docemente anárquica, orientava-nos para a vida. O sonho de Salvador Allende era elevar a expectativa de vida dos chilenos para os níveis dos países desenvolvidos. O seu desafio pessoal era permitir que cada chileno tivesse vinte anos mais para desenvolver a sua capacidade criadora, o seu engenho, e para que a velhice deixasse de ser um espaço de miséria e derrota, e fosse, pelo contrário, a soma de uma experiência, a herança de um povo.
Numa entrevista com Roberto Rossellini, o companheiro Presidente conta-lhe que as suas mãos de médico tinham realizado mil e quinhentas autópsias, que as suas mãos de médico conheciam a atroz força da morte e a precária fortaleza da vida. Salvador Allende foi o líder mais preclaro da América Latina, a vida era a sua companhia, e a vida foi a nossa bandeira de luta.
A trinta anos do crime, há miseráveis que interpretam o suicídio de Allende como uma derrota. Não entendem as razões de um homem leal, que no fragor do combate entendeu que o seu último sacrifício evitaria ao seu povo a máxima das humilhações: ver o seu dirigente, o seu líder, algemado e à mercê dos tiranos.
Queridas companheiras, queridos companheiros: não há maior honra do que a de ter sido companheiros de luta e de sonho como Salvador Allende. Não há maior orgulho do que esses mil dias liderados pelo companheiro Presidente.
Não somos vítimas nem do destino nem da ira de um deus enlouquecido. A história oficial, a mentira como razão de Estado, apresenta-nos como responsáveis de um crime que, cada vez que tentam explicar, as palavras fogem das suas bocas, pois não querem ser parte do vocabulário da vergonha. Se a nossa intenção de fazer do Chile um país justo, feliz e digno nos faz culpados, então assumimos a culpa com orgulho. A prisão, a tortura, os desaparecimentos, o roubo, o exílio, o não ter um país para onde voltar, a dor, se tudo isso era o preço a pagar pelo nosso esforço justiceiro, então saiba-se que o pagámos com o orgulho dos que não renunciaram à sua dignidade, dos que resistiram nos interrogatórios, dos que morreram no exílio, dos que regressaram para lutar contra a ditadura, dos que ainda assim sonham e se organizam, dos que não participam na farsa pseudodemocrática dos administradores do legado da ditadura.
Juntamente com Salvador Allende fomos protagonistas dos mil dias mais plenos, belos e intensos da história do Chile. Sobre nós deixaram cair todo o horror, mas não conseguiram apagar dos nossos corações o Memorial dos Anos Mais Felizes.
Quando, nos momentos mais duros dos nossos mil dias, a provocação do fascismo, da direita, do imperialismo ianque, fazia com que a ira se instalasse perigosamente nos nossos ânimos, o companheiro Presidente aconselhava-nos: "Vão para vossas casas, beijem as vossas mulheres, acariciem os vossos filhos." Agora, a trinta e cinco anos da grande traição, que a proximidade dos nossos, que a recordação dos que faltam, e o orgulho de tudo o que fizemos sejam os grandes convocantes do que devemos lembrar. Que as palavras "Companheira" e "Companheiro" soem como uma carícia, e bebamos com orgulho o vinho digno das mulheres e dos homens que deram tudo, que deram tudo pensando que não era o suficiente.
Fonte: Público
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